Cartão de identificação de Orwell

Com exceção de pequenas correções, o presente texto é uma pequena adaptação de uma dissertação de nível de graduação na matéria de Ética e Filosofia Política III. Tivesse de escrever hoje, a redação seria drasticamente diferente em muitos trechos. A ideia geral, porém, se mantem, e espero que os comentários gerais sejam úteis para outros leitores de Orwell.

Orwell e a via trágica da verdade na política: um comentário sobre a relação entre memória e o axioma da liberdade em 1984

“Qual tenha sido, Atenienses, a impressão que vos deixaram meus acusadores, não saberei dizê-lo. De minha parte, ouvindo-os cheguei quase a esquecer-me de mim mesmo, tal foi o seu poder de persuasão” (Platão, Apologia de Sócrates, 17a).

Em sua defesa contra as acusações da assembleia de Atenas, Sócrates parte da constatação de que o discurso de seus acusadores é capaz de despertar determinadas percepções em seus ouvintes que até mesmo o próprio Sócrates é passível de esquecer-se de si. Neste célebre e antigo processo de Atenas contra Sócrates, Platão já tematiza a relação entre o que se diz, como se diz e as interferências cognitivas que o discurso pode operar, alterando até mesmo a leitura da realidade. Mais de 20 séculos nos separam de Sócrates. Ainda assim, mais recentemente, George Orwell dedicou sua obra a tratar da relação entre mentira e política, especialmente a mentira que justifica o fascismo, o colonialismo e os estados totalitários em geral.

O presente trabalho faz um breve comentário de uma passagem do último livro publicado por Orwell, também contado entre suas principais obras. Na passagem em questão, o personagem principal de 1984, Winston Smith, é torturado e interrogado pelo Partido do Socialismo Inglês (doravante Socing), representado por O’Brien. O que se tem em vista neste comentário é retomar o vínculo entre memória e verdade como antídoto às mentiras do totalitarismo no romance em questão. A postura de Orwell com relação à centralidade da memória, contudo, é ambígua, como se demonstrará adiante. De um lado, a memória é um meio de resistência às mentiras do Partido. De outro, porém, ela é falha. Partiremos da descrição da passagem em que o axioma da liberdade de Winston é problematizado pelo torturador O’Brien e, por meio da exposição desse mesmo axioma em outras passagens do romance, bem como em outros textos de Orwell, especialmente Recordando a guerra civil espanhola, buscaremos recuperar pontos-chaves em que Winston recorre ao passado como espelho pelo qual as distorções do discurso presente tornam-se evidentes.

Publicado em 1949, 1984 divide-se em três partes. A parte 1 tem como foco o personagem principal, Winston Smith, e a descrição da vida sob o regime do Partido. Winston, um funcionário do Ministério da Verdade, começa a escrever um diário pessoal às escondidas. A partir disso, uma série de tensões se desenrolam ao longo da primeira parte do romance, tematizando especialmente as estratégias do Partido de usar a mentira e a reescrita da história como meio de dominação. Vemos, em especial, Winston Smith resistir ao estado pela via da nostalgia como desarme das ilusões ideológicas. A parte 2 tem como foco o relacionamento de Winston com Julia. Relacionar-se amorosamente com Julia faz com que Winston se sinta vivo novamente e o motiva a resistir ao Partido até de modo conspiratório. Por fim, a parte 3 possui como foco os diálogos entre Winston e O’Brien, seu torturador. Nessa terceira e última parte do romance, conhecemos mais dos métodos de dominação do Partido, mas do ponto de vista de um de seus defensores. Vemos também a consciência de Winston ser “reconfigurada” ao longo das torturas até que as mentiras do partido passem a ser aceitas por ele como verdade. É em uma da sessões de tortura que lemos o diálogo entre O’Brien e Winston:

“‘Você aprende devagar, Winston’, disse O’Brien gentilmente. ‘O que posso fazer?’, respondeu Winston entre lágrimas. ‘Como posso deixar de ver o que tenho diante dos olhos? Dois e dois são quatro.’ ‘Às vezes, Winston. Às vezes são cinco. Às vezes são três. Às vezes são todas essas coisas ao mesmo tempo. Precisa se esforçar mais. Não é fácil adquirir equilíbrio mental.’” (ORWELL, 2020, p. 320).

Se, de um lado, temos um contraste claro entre as posturas do torturador e a postura do torturado, marcadas respectivamente pelas expressões “gentilmente” e “entre lágrimas”, temos, de outro, um contraste mais profundo, construído ao longo do romance até culminar na passagem citada. Trata-se de uma disposição a aceitar as mentiras do partido como verdade e o axioma da liberdade formulado por Winston ao fim do penúltimo capítulo da primeira parte do livro. Ali, depois de uma meditação sobre o estatuto de verdade do passado, ilustrado na execução de três camaradas e no acobertamento da execução, Winston estabelece um fundamento epistemológico para a liberdade, que diz respeito a uma determinada postura diante da realidade, chamado pelo narrador de 1984 de “axioma importante”: “Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro. Se isso for admitido, tudo o mais é decorrência” (ibidem, p. 126).

Como veremos adiante, essa formulação não é banal. Orwell vale-se desse axioma de conteúdo aritmético em várias passagens tanto de 1984 quanto de outras obras. Em seu ensaio de sete partes meditando sobre a experiência da guerra civil na Espanha, Orwell usa a mesma formulação como exemplo de seu temor pelo triunfo dos regimes fascistas sobre a verdade objetiva e a memória dela:

“Se o Líder diz de tal ou qual evento: ‘Nunca aconteceu’, bem, então nunca aconteceu. Se ele diz que dois e dois são cinco — bem, dois e dois são cinco. Esta perspectiva me assusta muito mais do que bombas — e, depois de nossas experiências dos últimos anos, esta não é uma afirmação frívola.” (ORWELL, 2021, p. 270).

Para Orwell, a liberdade, até mesmo a liberdade política, depende do reconhecimento da verdade enquanto tal. Seu temor crescente diante das estratégias de domínio do fascismo está enraizado no temor pelo abandono da verdade: “o que é peculiar a nossa época é o abandono da ideia de que a história pudesse ser escrita com base na verdade” (ibidem, p. 269). Embora Orwell reconheça os vieses na historiografia, o que o preocupa é que o essa constatação seja deliberadamente tomada como escusa para a busca da verdade. Quando a noção de verdade é abandonada, a possibilidade mesma da ciência é negada. É o que veríamos, por exemplo, na teoria nazista da ciência, que “nega, explicitamente, que algo como ‘a verdade’ exista. Não há, por exemplo, nada como ‘a ciência’. Há apenas a ‘ciência alemã’, a ‘ciência judia’ etc.” (ibidem, p. 270). Com o comentário acima, Orwell não tem em mente um possível caráter plural e multifacetado da verdade. Antes, o que se tem em vista é o esvaziamento de conteúdo da palavra “verdade” para que a expressão sirva a fins políticos.

Em 1984, Winston é funcionário do Ministério da Verdade. Seu posto de trabalho, em especial, é o Departamento de Documentação. A rotina de Winston não é marcada, contudo, pela divulgação das informações verdadeiras e preservação dos documentos que comprovam e registram fatos. Em vez disso, a partir do estatuto de verdade que se imputa ao Ministério da Verdade, seu trabalho consiste exatamente em alterar documentos e referências cruzadas de modo a acobertar as mentiras do Partido e torná-las as verdades oficiais (cf. especialmente o capítulo 4 da parte 1, em que Winston se dedica a trabalhar em um discurso do Grande Irmão, principal figura do estado totalitário em 1984, sobre Ogilvy, um camarada provavelmente inventado).

Junto do Ministério da Verdade, também operam o “Ministério da Paz, responsável pela guerra. O Ministério do Amor, ao qual cabia manter a lei e a ordem. E o Ministério da Pujança, responsável pelas questões econômicas” (ORWELL, 2020, p. 38). Entre esses quatro ministérios “se dividia a totalidade do aparato governamental” (ibidem). É preciso notar que, embora a figura do tirano sempre tenha existido como objeto de reflexão da filosofia política (BIGNOTTO, 1998), a modernidade traz consigo uma mudança importante na função mesma do estado, que é refletida no aparato estatal como descrito em 1984.

A função de cada um dos ministérios parte de uma certa compreensão da natureza do estado, a saber, da estrutura do Estado como instrumento de engenharia social. Ao comparar as visões de política antiga e moderna, Habermas reconhece uma mudança fundamental demonstrada por três características. O paradigma novo de política teria nascido em Hobbes, que se ocupa da política em um novo sentido, o da filosofia social (HABERMAS, 2013, p. 82). A mudança consiste em que, para Aristóteles e a tradição aristotélica, a política era uma extensão e realização da ética, enquanto que, na modernidade, ela passa a ser filosofia social, ou técnica social (ibidem, p. 81). Primeiro, enquanto continuação da ética, a política era vista como doutrina da vida boa e justa. Em segundo lugar, a política se relacionava com a práxis, e não com a techne. Por fim, em Aristóteles, a capacidade própria da filosofia prática, o que inclui a política, é a phronesis, que inclui um discernimento a cada situação sobre como agir, em vez de uma alteração técnica dos meios ou do corpo político com vistas à transformação em direção a um critério artificial (ibidem, p. 82-83).

Com o novo paradigma da política enquanto técnica, e não bem viver, tudo o que reconhecemos como o aparato político tem em vista conformar a sociedade e seus meios a uma visão determinada pela liderança política. Em 1984, cada um dos ministérios tem em vista configurar e reconfigurar a sociedade de Oceânia à luz dos princípios do Socing pela manutenção do poder do Partido. Orwell, assim, põe ao leitor o mesmo problema com que lidou La Boétie no século 16, em Discurso da servidão voluntária. Embora as obras de Orwell e de La Boétie não se relacionem entre si, dirigem-se igualmente à relação entre poder e tirania. O chamado “enigma de La Boétie” busca compreender a razão pela qual os povos se submetem aos tiranos (LA BOÉTIE, 1987, p. 12). Seriam três as características que levariam os povos a se submeterem voluntariamente aos tiranos. A fim de se manter em sua posição, o tirano precisa de estratégias. Primeiro, o tirano precisa “bestializar” seus súditos através do divertimento (LA BOÉTIE, 1987, p. 27). Segundo, os tiranos criam em volta de si uma aura de sacralidade, expondo-se a público somente envoltos em cerimônias, rituais e símbolos. Terceiro, os tiranos se defendem cercando-se de pessoas que o defendam, tendo em vista a demonstração pública de que em sua própria corte ninguém é confiável.

Uma das ferramentas que Winston usa em seu trabalho no Departamento de Documentação do Ministério da Verdade é o “buraco de memória”:

“Nas paredes da estação de trabalho viam-se três orifícios. […] na parede lateral, ao alcance da mão de Winston, uma grande abertura retangular, protegida por uma grade de arame. Esta última destinava-se aos papéis a descartar. Aberturas similares se espalhavam aos milhares, ou dezenas de milhares, por todo o edifício, fazendo-se presentes não apenas em cada sala mas também, a pequenos intervalos, em todos os corredores. Por algum motivo, tinham recebido o apelido de buracos de memória. Quando a pessoa sabia que determinado documento precisava ser destruído, ou mesmo quando topava com um pedaço qualquer de papel usado, levantava automaticamente a tampa do buraco da memória mais próximo e o jogava ali dentro, e então o papel ia torvelinhando numa corrente de ar quente até cair numa das fornalhas descomunais que permaneciam ocultas nos recessos do edifício.” (ORWELL, 2020, p. 76).

O esquecimento desempenha um papel importante na torção da verdade em 1984 e faz parte do pessimismo mais geral que Orwell tem com relação ao futuro. Ainda sobre a guerra espanhola, na mesma passagem em que aparece pela primeira vez o que se tornaria o axioma da liberdade em 1984, ele demonstra temor no que diz respeito à veracidade dos arquivos futuros deixados pela guerra:

“Mas suponha que o fascismo seja finalmente derrotado e algum tipo de governo democrático se restabeleça na Espanha num futuro razoavelmente próximo; mesmo então, como é que a história da guerra será escrita? Que tipo de arquivo Franco deixará para trás? Suponha até mesmo que os arquivos mantidos pelo governo atual sejam recuperáveis — mesmo assim, como uma história verdadeira da guerra será escrita? Pois, como já sublinhei, o governo também lidava amplamente com mentiras. Do ângulo antifascista, seria possível escrever uma história verdadeira da guerra em termos gerais, mas seria uma história parcial, em cujos pontos secundários não se pode confiar. Ainda assim, no final das contas, algum tipo de história será escrita e, depois que aqueles que de fato se lembrarem da guerra estiverem mortos, será universalmente aceita. Então, para todos os efeitos práticos, a mentira terá se tornado verdade”. (ORWELL, 2021, p. 269).

Orwell demonstra seu conhecimento de que governos não fascistas também se valem da mentira com interesse próprio. No entanto, sua preocupação recai sobre a futura perda de nossa capacidade de reconhecer a mentira como mentira. Na passagem em questão, a única coisa que torna a mentira passível de ser aceita universalmente como verdade é que os que se lembram da guerra estejam mortos. Apenas uma perda do passado por meio da memória torna as mentiras universalmente aceitas como verdade. A memória seria, assim, o último elo entre verdade e os registros do que aconteceu.

Em 1984, a falibilidade dos registros também é um recurso importante para a propagação de mentiras. Se o Partido “vaporizava” ou perseguisse e matasse alguém, todas as menções àquela pessoa desapareciam (ORWELL, 2020, p. 54). Quando o Partido precisava alterar um registro passado de promessa para se conformar ao que supostamente cumpriu, o mesmo era realizado:

“Seria possível as pessoas engolirem aquela, passadas apenas vinte e quatro horas do anúncio? Sim, engoliam. Parsons engoliu sem dificuldade, com a estupidez de uma besta. A criatura sem olhos da outra mesa engoliu fanática, apaixonadamente, com um desejo furioso de seguir, denunciar e vaporizar todo aquele que viesse a sugerir que na semana anterior a ração era de trinta gramas. Syme também — de uma maneira mais complexa, que envolvia duplipensamento —, Syme engoliu. Winston era o único, então, a possuir memória.” (Ibidem, p. 100-101).

Mais tarde, no mesmo livro, vemos que parte do trabalho de Winston era exatamente esse no Departamento de Documentos. O lema do partido era “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado” (ibidem, p. 72). Não consistia apenas em uma alteração do passado, mas em um tipo de controle tal sobre as pessoas que divergências sobre o que teria acontecido não poderiam existir: “O passado, refletiu ele, não fora simplesmente alterado; na verdade fora destruído” (ibidem, p. 73). Isso está no centro da doutrina do Socing:

“A mutabilidade do passado é o ponto central da doutrina do Socing. Afirma-se que os fatos passados não têm existência objetiva e que sobrevivem apenas em registros escritos e nas memórias humanas. O passado é tudo aquilo a respeito do que há coincidência entre registros e memórias.” (Ibidem, p. 277-278).

O propósito de se alterar a memória não seria apenas um controle do que de fato aconteceu, mas mediar a relação entre as pessoas e realidade:

“Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples. O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a própria memória. ‘Controle de realidade’, era a designação adotada. Em Novafala: ‘duplipensamento’.” (Ibidem, p. 72)

É por isso que parte importante do modo de pensar do Socing não está apenas baseado no esquecimento, mas depende também de forçar-se a esquecer-se do esquecimento:

“O camarada Ogilvy, que nunca existira no presente, agora existia no passado, e tão logo o ato da falsificação caísse no esquecimento, existiria com a mesma autenticidade e com base no mesmo tipo de evidência que Carlos Magno ou Júlio César.” (Ibidem, p. 87).

Winston, porém, reconhece as mentiras do Partido. A tensão narrativa de 1984 é criada principalmente porque a memória que Winston tem do passado permanece com ele em alguma medida. O narrador chama de “conhecimento furtivo” o conhecimento que Winston tem da realidade para além das mentiras do Partido: “Só que isso não passava de uma amostra de conhecimento furtivo que ele por acaso possuía graças ao fato de sua memória não estar corretamente controlada” (ibidem, p. 71). O conhecimento furtivo de Winston é um fundamento importante de sua capacidade de enxergar a realidade e tê-la como espelho pelo qual as mentiras do partido podem ser reconhecidas.
Ao fim da primeira parte, a vida antes da Revolução passa a ser uma questão importante para Winston (ibidem, p. 116). Há dois polos importantes nos capítulos sete e oito da parte um que materializam essa busca. Primeiro, Winston entrevista um proleta idoso na tentativa de desmascarar a ideia de que a vida pós-Revolução é melhor do que a vida anterior a ela. A entrevista, porém, não é satisfatória. Depois, ao retornar para casa, Winston passa pela loja de antiguidades em que comprou o seu diário (que dá início ao romance). É importante que essa loja seja de antiguidades, pois, ali, o passado permanece materializado. E, adiante, na segunda parte do livro, a loja torna-se um refúgio para que o romance de Winston e Julia aconteça fora do alcance do partido. A loja de antiguidades torna-se assim, o modo pelo qual a verdade no passado permanece presente e torna Winston imune às mentiras do partido.

A importância da memória, aliás, junto com a importância da linguagem e da confiança mútua, é um tema reconhecidamente constituinte tanto da estrutura quando da tese de 1984 (CRICK, 2007, p. 152). Essa ênfase aparece ainda na primeira parte do romance com a importância do diário de Winston, que desencadeará toda a sequência de eventos que dá início à tensão narrativa que faz Winston se comprometer cada vez mais com a possibilidade de resistência ao Partido até cair em uma armadilha.
Em outra passagem, já em conspiração com O’Brien, Winston retoma a importância do passado na resistência ao partido:

“‘A que brindaremos desta vez?’, perguntou, ainda com a mesma insinuação sutil de ironia. ‘À desorganização da Polícia das Ideias? À morte do Grande Irmão? À humanidade? Ao futuro?’ ‘Ao passado’, disse Winston. ‘Ao passado é mais importante’, concordou gravemente O’Brien.” (Ibidem, p. 236-237).

Em todos esses casos, Orwell não pensa a memória apenas como uma conservação da verdade passada, mas como uma ligação com a própria realidade. Em última instância, a preocupação que o Partido tem de alterar o passado, é a preocupação de mediar a realidade para a população. Enquanto Winston pensa sobre o problema do estatuto de verdade do passado no capítulo sete da parte um, a relação entre memória e realidade aparece como um ponto de tensão em que o Partido investe para romper:

“Era como se alguma força monumental exercesse pressão sobre Winston — uma coisa que invadia seu crânio, golpeava seu cérebro, aterrorizava-o a ponto de fazê-lo abandonar suas crenças, quase convencendo-o a rechaçar as provas que seus sentidos lhe forneciam. No fim o Partido haveria de anunciar que dois mais dois são cinco, e você seria obrigado a acreditar. […] Além da validade da experiência, a própria existência da realidade externa era tacitamente negada por sua filosofia. A heresia das heresias era o bom senso. E o aterrorizante não era o fato de poderem matá-lo por pensar de outra maneira, mas o fato de poderem ter razão. Porque, afinal de contas, como fazer para saber que dois e dois são quatro? Ou que a força da gravidade funciona? Ou que o passado é imutável? Se tanto o passado como o mundo externo existem apenas na mente, e se a própria mente é controlável — como fazer então?” (Ibidem, p. 125).

Também aqui, o axioma da liberdade é aludido e conectado ao problema da relação entre memória e realidade. Winston, então, especialmente nas partes um e dois do romance, tem na preservação de sua memória, ou “conhecimento furtivo”, o antídoto às mentiras do partido. A memória é um meio de resistência às mentiras do Partido, de tal modo que, no episódio da tortura de Winston, O’Brien tenta eliminar a confiança de Winston em sua própria memória para que, assim, ele possa também abandonar a noção de verdade objetiva (SATTA, 2023; ORWELL, 2020, p. 314-5). Também aí está a sua esperança de, por meio do seu diário e registros, mudar algo na situação de Oceânia (Ibidem, 2020, p. 212).

A memória, contudo, não é o meio definitivo de esperança contra o regime. Se, por um lado, a memória é o único meio de conservação da realidade contra às intervenções falsificadoras do regime, por outro, ela é falível. É sobre essa falibilidade, aliás, que o Partido se apoia para falsificar os registros:

“E quando a memória falhava e os registros escritos eram falsificados — quando isso acontecia, as alegações do Partido, ou seja, de que era responsável pela melhoria das condições da existência humana, tinham de ser aceitas, pois não havia e nunca mais haveria parâmetros com os quais confrontar essa afirmação.” (Ibidem, p. 139).

Além de falha, ela é vaga: “Tão logo o odor lhe chegou às narinas, emergira de sua memória algo que ele não conseguia definir, mas que era forte e perturbador” (Ibidem, p. 174). A partir desse caráter, a história pode ser recontada segundo o interesse do Partido. Ao fim do romance, a memória de Winston e de Julia é completamente refeita e ambos raciocinam a partir do duplipensamento, isto é “uma série interminável de vitórias sobre a própria memória. ‘Controle de realidade’, era a designação adotada” (ibidem, p. 72).

Vemos, assim, a partir do axioma da liberdade, que O’Brien põe em dúvida ao torturar Winston, que a liberdade está fundamentada na relação entre memória, verdade e realidade. Tanto em um romance como 1984 quanto em seu ensaio biográfico da participação na guerra da Espanha, Orwell entende que o uso político da mentira depende do esquecimento. Há, portanto, um vínculo entre memória e verdade como antídoto às mentiras do totalitarismo. A memória é um meio de resistência à politização da mentira como manutenção do poder. Ela é, contudo, falha, de modo que a verdade possui um caráter tragicamente ambíguo na visão de Orwell. De um lado, a memória é a tábua de salvação no mar de mentiras e manipulação. De outro, ela também é falha, posto que está individualmente circunscrita à própria mente e pode ser manipulada, especialmente como vemos ao final do romance. Tal qual Sócrates denuncia no início de sua defesa, Orwell nos alerta para as mentiras que podem ser aceitas como verdade e do poder que o discurso tem de interferir na memória de modo que a percepção do real seja distorcida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BIGNOTTO, Newton. O tirano e a cidade. São Paulo: Discurso Editorial, 1998.
CRICK, Bernard. Nineteen Eighty-Four: Context and Controversy. In: RODDEN, John (org.). The Cambridge Companion to George Orwell. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 146–159.
HABERMAS, Jürgen. A doutrina clássica da política em sua relação com a filosofia social. Em: Teoria e práxis: Estudos de filosofia social. São Paulo: Editora UNESP, 2013. p. 81–141.
LA BOÉTIE, Etienne De. Discurso da servidão voluntária. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2020.
ORWELL, George. Recordando a Guerra Civil Espanhola. In: Lutando Na Espanha. 4. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021. p. 253–284.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Em: Diálogos: Apologia de Sócrates - Critão - Menão - Hípias Maior e outros. Pará: Universidade Federal do Pará, 1980. v. I–II.
SATTA, Mark. George Orwell. 2023. Disponível em: https://criticanarede.com/orwell.html#ffn25. Acesso em: 20 dez. 2023.