A verdade é que eu me surpreendi com o livro. O livro, me parece, é uma meditação sobre a ontologia da falta e o que acontece quando essa falta é, em vez de suprida em sua necessidade mais própria, acobertada. É uma falta que se manifesta como um anseio constante: “Nós ansiávamos pelo futuro. Como foi que aprendemos isso, aquele talento pela insaciabilidade?”. O resultado desse acobertamento é a própria redução do que significa estar vivo: “Isso é o que somos agora. As condições de vida foram reduzidas; para aquelas dentre nós que ainda têm condições de vida”. A religião, então, é reduzida ao âmbito da política. Em Gilead, isso se materializa, dentre muitas formas, nas “Escritos da Alma”, onde máquinas impressoras chamadas “Holy Rollers” imprimem rolos de orações encomendadas por telefone, um serviço que demonstra lealdade ao regime. Ofglen, diante delas, sussurra a pergunta herética: “Você acha que Deus escuta […] estas máquinas?”. É impossível não contrastar essa forma técnica de religião com o zelo de João Calvino que, no prefácio ao Saltério de Genebra (1543), afirmava que os cânticos devem ser como “chamas para inflamar nossos corações em oração e adoração a Deus, para que a Palavra ressoe em nós com maior vigor, e não para nos deleitarmos em vãs melodias”. Em Gilead, a chama se extinguiu, restando apenas o mecanismo. Essa ideia de que, em O Conto da Aia, em vez de a religião se elevar ao âmbito da política, ela se rebaixa a ele, é algo que eu já tinha visto o Dionisious Amendola falar mas não havia entendido ainda. Não deixa de ser interessante que alguns grupos de “rebeldes” que aparecem no meio do caminho são justamente grupos religiosos (presbiterianos, batistas). A fé autêntica, ao que parece, tornou-se subversiva, como no diálogo entre as Aias: “— Derrotaram mais rebeldes, desde ontem. — Louvado seja […] — O que eram eles? — Batistas”. Heidegger começa §1 de Ser e Tempo com uma breve descrição do poder do dogma para sancionar o esquecimento da Seinsfrage: “No solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido de ser, como lhe sanciona a falta”. Essa é, de fato, uma função do dogma que, por outro lado, não lhe é tão própria de sua natureza quanto o é de seu lugar no mundo do desencanto. É o que se vê em O Conto da Aia que, além do tratamento mais óbvio do domínio dos corpos femininos nessa teocracia babilônica com verniz de cristianismo cultural, trata-se, antes, de uma longa meditação sobre a ontologia da falta — e só acima disso se constrói esse tipo de domínio tirânico específico retratado no romance. Se desassociar o assunto principal de O Conto da Aia de formas “puras” e “óbvias” de dominação dos corpos femininos e de um possível papel para a religião parece algo escandaloso, quão mais escandaloso não deve ser ler a seguinte passagem sobre o fascismo vindo de Heidegger (!): “… o niilismo enquanto este se manifesta de modo sempre mais claro sob a forma política do fascismo”. O fascismo, interpreta Heidegger, é a forma visível na política do acobertamento da Falta, que constitui propriamente a medida dessa época. Socialmente, esse acobertamento se manifesta como uma corrosão dos afetos, sobrando apenas a inveja: “Nesta casa todas nós invejamos umas às other por alguma coisa”. A relação entre a Aia e a Esposa é a encarnação disso: “O que ela inveja em mim? Ela não fala comigo, a menos que não possa evitar. Sou uma vergonha para ela; e uma necessidade”. É por isso que há algo em uma distopia como O Conto da Aia que está em continuidade com uma distopia (ou pré-distopia) como a de Tasmânia, de Paolo Giordono. Se em O Conto da Aia vemos o acobertamento da Falta consumado, em Tasmânia vemos a chegada da Falta como Falta sendo pressentida por todos os lados, razão de esse romance caracterizar mais um tempo pré-apocalíptico do que apocalíptico efetivamente. Ou, como se diz em Tasmânia, uma era pré-traumática, em que a flanerie assume a forma da ausência e as orações assumem a forma da repetição mais do que da transcendência (#PrayFor). É preciso assumir esse desafio, em nosso tempo, do pensamento pré-traumático. Talvez seja disso que Heidegger fale quando pensou no pensamento do “outro início”, não tanto o pensamento para depois que a metafísica acabou, mas o pensamento que pressente o fim das coisas como aí estão e que precisa tematizar este fim.


Atwood, Margaret. O conto da aia. Traduzido por Ana Deiró, Rocco, 2006. Giordano, Paolo. Tasmânia. Traduzido por Wander de Mello Miranda, Âyiné, 2024. Nunes, Benedito. “O  Nietzsche de Heidegger”. Heidegger, organizado por Victor Sales Pinheiro, Loyola, 2016, p. 83–94.